Entramos na sala do Midas Studio em São Paulo sendo recepcionadas de braços abertos: “Venham aqui, vamos ter contato que é isso que importa”, disse a cantora e compositora Kell Smith. Enquanto olhávamos a sua apresentação no pocket show que antecedeu a divulgação de seu álbum de estreia “Girassol”, ficamos maravilhadas com as lágrimas que enchiam seus olhos a cada música e a performance tão verdadeira. A apresentação foi divulgada ao vivo nas redes sociais da cantora na última quarta-feira e no Facebook do seu produtor, o renomado Rick Bonadio.
A simpatia de toda a sua equipe, família e amigos que acompanharam tudo de perto, nos fez sentir confortáveis no novo ambiente. Mas foi somente ao final da live, já sentadas no chão ao lado da cantora, que nos sentimos em casa. Já sem a bota de salto alto e os grandes brincos de argola, e vestindo uma camiseta branca (diferente do que vemos na gravação do pocket), ela se mostrou ainda mais verdadeira como pessoa e como artista.
Com influências como Belchior e Elis Regina, Kell Smith conseguiu atingir milhões de pessoas no país, ficando entre as artistas mais tocadas no Brasil antes mesmo de lançar o seu primeiro álbum. “Girassol” entra nessa sexta em todas as plataformas de streaming e será lançado no formato físico como parte da celebração de todo o trabalho feito anteriormente com os EPs Kell Smith (2017) e Marcianos (2017), e com faixas como “Respeita as Mina” e “Era Uma Vez”.
Sendo cotada muitas vezes como rosto de uma “Nova MPB”, Kell Smith deixa bem claro que não gosta dessa classificação. “A MPB não é um estilo musical, é um movimento. Detesto quando falam que sou parte da Nova MPB, não existe isso! Essa galera misturando indie, folk, sertanejo e que chamam de “a nova MPB”, não é. É música, tem uma mensagem a ser passada, é bem massa. Mas não chama de MPB porque não faz parte de um movimento”, diz.
Ainda no pocket show, pudemos encontrar uma artista completa e cheia de sua própria verdade. Cantando o que a emociona, perguntamos se ela sempre se conecta assim com as músicas. “Sempre, porque eu componho aquilo que canto. Se pego uma mensagem pronta de outro compositor, também penso que é minha para não perder isso. Se eu cantar uma música do Belchior, estarei em cada frase entregando o meu melhor. Não penso na música como um entretenimento, apesar de ser… Gosto de música para mexer o corpo, mas gosto de fazer música que mexe com a cabeça, para edificar. Sempre que componho penso no que meu pai vai achar porque foi ele que me alimentou disso. Tenho muita responsabilidade com que escrevo, por isso transparece essa emoção”, conta.
Confira a entrevista com Kell Smith completa:
E.T.C.: Você escreve desde quando?
KS: Desde muito pequena escrevo algumas coisinhas. Sempre amei. Quando compus “Era uma vez” tinha acabado de ler “Bagagem”, da Adélia Prado, que é um livro que fala sobre as coisas simples.
E.T.C.:Você lança “Girassol” agora e o álbum é uma celebração de uma era que deu certo. Como encara esse fechamento?
KS: O álbum pra mim é sinal de respeito com a história da música que eu conheço. Não cresci vendo uma música que não era palpável. Hoje a internet te possibilita isso, mas não admiro artistas desta época tanto quanto admiro Belchior, Edu Lobo… esses caras tem vinil, tem algo material para dizer “Olha, dá para pegar todas essas histórias na mão”. Então, o CD significa isso para mim: a arte que eu consigo juntar em algo físico e pegar na mão.
E.T.C.:Algumas das suas músicas são muito românticas. Dá para escrever algo tão verdadeiro sem estar apaixonada? Seja por alguém, alguma coisa ou até mesmo pela vida?
KS: Falo sobre as pessoas, então mesmo quando escrevo sobre coisas que estou vivendo, é sobre o outro que está vivendo junto comigo. Então, a pergunta é mais se dá para escrever sem o outro estar apaixonado e eu acho que não! Mas, as músicas que escrevi sobre amor, todas eu vivi. Porém, dá para ver o outro apaixonado e escrever sobre ele.
E.T.C.:Acompanhamos sua carreira e pudemos ver as estratégias de lançamento de single e EP que te transformaram em uma das artistas mais ouvidas do país. O álbum agora consagra todo esse trabalho. Acredita que esse início de carreira fica como um case de como trabalhar música hoje em dia? Esse modelo se encaixa mais na fase atual da indústria musical?
KS: O motivo de eu ter lançado singles e não o álbum antes é porque sou ansiosa para mostrar as músicas para as pessoas, fico muito na cabeça do Rick [Bonadio]. Fico pensando no que o nosso país está passando e quero falar disso! Não aguento mais colocarem a culpa na vítima e não no estuprador, sinto vontade e necessidade de falar sobre isso. “Era uma vez” é isso também. Chegamos em um momento que o mundo está tão feio que sentimos vontade de voltar a ser criança. E não é que o mundo não era feio, nós que não entendíamos, então vivíamos para dentro sem perceber tudo que estava acontecendo aqui fora. Solto músicas pela necessidade de falar coisas, não vejo como uma estratégia, até porque eu nem entendo isso.
E.T.C.:No álbum percebemos diversos gêneros musicais, MPB, ska, reggae, rap, etc. Como você organiza essa mistura no processo de composição? Você consegue visualizar na letra uma tendência para um tipo de gênero ou é algo natural?
KS: Não penso nisso. Primeiro nasce da ideia do que dizer, depois transformo em música e decido em que tom eu quero cantar, se é no rap, ragga, reggae… Vou criando a música com a cara que ela tem, por isso que ela sempre combina muito com a letra. Sempre vem primeiro o que eu tenho a dizer e depois o que tenho a cantar. As vezes tenho muito a dizer e preciso jogar tudo em um flow para conseguir encaixar [conta rindo].
E.T.C.: Você fala sobre preconceito em “Marcianos” e sobre as pressões da sociedade. Como você lidou e lida com essas pressões externas, haters e tudo mais?
KS: Lido perguntando e conversando. Nossa única arma é o que temos para dizer. Não adianta dar uma cotovelada em alguém, você apaga a pessoa e ela não sabe qual é a sua opinião. Se estivesse na frente de uma Bolsonaro da vida, eu diria “Qual o teu problema com a vida das pessoas? Se você não gosta de um ‘viado’, não case com ele”. Eu lido assim, falando para cacete.
E.T.C.: Tem uma frase nessa música que gosto muito que é “a revolução começa em frente ao espelho”. Quando você enxergou a sua própria revolução em frente ao espelho?
KS: Todo dia, nunca é o bastante. Eu sou a mina que compôs “Respeita as Mina” e já fui machista nas minhas atitudes. Sou a mina que hoje canta um rap e falou que isso era coisa de bandido antigamente. Tem que ser todo dia! Você tem que olhar para si mesmo e pensar ‘faz sentido o que estou falando ou estou só reproduzindo o discurso de ódio de alguém?’. Ninguém nasce racista ou homofóbico, nascemos crianças. Aprendemos com nossos pais o que é amor, o que é dor, o que é sofrimento. Na escola, aprendemos o que é bullying e aprendemos que até para não se encaixar, você tem que se encaixar num grupo de quem não se encaixa em nada. É isso que a gente vive. Então temos que olhar todos os dias para o espelho e refletir se estamos sendo o nosso melhor hoje. Tem que se desconstruir e reconstruir todos os dias.
KS: “Respeita As Mina” nasceu porque eu não sabia como ajudar uma amiga que estava passando por uma violência. O que eu falo para ela fazer? Quando percebi que não sabia o que fazer, pensei que era necessário sabr o que falar. E é bom que você tenha humildade o suficiente para entender que você erra. Porque a gente gosta de colocar a culpa no Bolsonaro, mas talvez você já tenha dito ‘tomara que meu filho não seja gay’. Então é do Bolsonaro ou é sua? Não sei. Pode ser minha também.
Por E.T.C.