Após o lançamento de “Guardiões da Galáxia” em 2014, a Marvel tenta dar uma cara diferente para cada nova estreia, mirando em sair um pouco da fórmula do filme de super-herói, já saturada no cinema atual. Esta tentativa parece se tornar mais difícil quando se trata de um filme de origem como pudemos conferir em “Homem-Formiga” e “Doutor Estranho”, que apesar de serem aventuras bastante competentes e que divertem suficientemente na sala do cinema, porém não ficam marcadas na memória do telespectador. Talvez isso tenha norteado a “Casa das Ideias” a tornar a dar um estilo diferente ao “Pantera Negra” que acertadamente não se trata de uma origem.
Mais do que um filme – Um manifesto
A história inicia-se imediatamente após os acontecimentos de “Guerra Civil”, onde o rei T´Chaka é morto e o príncipe T´Challa precisa assumir o papel de líder da nação, além de já ser seu protetor como Pantera Negra, lidando com a morte de seu pai e a cobrança de se tornar um bom rei. Nesta busca, o herói precisa confrontar escolhas das gerações passadas, entre elas o fato de Wakanda, um reino extremamente próspero e avançado tecnologicamente, permanecer escondido num continente devastado pela pobreza e exploração, sem promover ajuda as nações vizinhas. Esta discussão permeia a narrativa, e a cada nova peripécia tecnológica demonstrada, o telespectador também se questiona se esta posição política isolacionista seria a mais adequada.
Esse ponto torna o vilão Killmonger, vivido por Michael B. Jordan, um grande acerto no roteiro, principalmente que os antagonistas do universo Marvel se apresentam como um problema em diversos filmes, muitos pela superficialidade. As motivações de Killmonger são completamente compreensíveis, dando uma dimensão maior para seu personagem que ultrapassa a dicotomia bem versus mal, tornando-o extremamente forte e com uma complexidade que vai sendo revelada com o passar do tempo, ao mesmo tempo que demonstra atitudes que nos lembram o seu lado mais sombrio.
O roteiro também acerta ao introduzir os elementos necessários no começo, tornado o filme compreensível até mesmo para quem nunca assistiu nada da Marvel. Para o mais impaciente, pode parecer como uma enrolação, mas com o desenrolar da obra, cada aspecto apresentado vai ganhando o seu peso, demonstrando ser uma base importante para o desenvolvimento de cada personagem. As escolhas feitas por cada um, sempre apresentam suas consequências, mesmo que muito tempo depois, demonstrado que o diretor Ryan Coogler, que também assina o roteiro juntamente com Joe Robert Cole, sabia exatamente a dimensão que cada um iria tomar.
Coogler também não economiza controle com relação a perspectiva do telespectador no momento da ação. Somos o tempo todo jogados no meio dela, sentindo cada movimento, principalmente o peso dos golpes que o protagonista absorve com seu traje. Vale o destaque para um plano sequência incrível dentro de uma espécie de cassino clandestino, que nos remete a um combate em “Creed” dirigido pelo mesmo Coogler. As tomadas aéreas de Wakanda também impressionam, apesar de alguns momentos, os efeitos especiais falhem um pouco, mas nada que tire a imersão.
Político, mas com ação
Porém, nada pode ser mais destaque do que uma palavra que não pode faltar ao falarmos de “Pantera Negra”: representatividade. Somente o fato de ser uma produção hollywoodiana de caráter extremamente comercial com um elenco majoritariamente negro não faz jus ao peso que esta obra tem na cultura pop. Além de representações plásticas maravilhosas daquilo que reconhecemos como sendo africano, as nuances culturais do continente podem ser identificadas com clareza. Os ritos de passagem, o respeito a ancestralidade, a espiritualidade, as cores, a força dos povos, o orgulho do pertencimento, família e tribo. Até mesmo o fato de que em um único território de um país contenha diversas tribos que nem sempre estão convivendo em harmonia é caracterizado com respeito. Questões com relação a exploração e diáspora negra são apresentados naturalmente, fazendo parte da problemática apresentada na narrativa de maneira consistente e sem revanchismo.
O protagonista vivido por Chadwick Boseman é o primeiro herói negro com destaque desde o caçador de vampiros Blade, dando ao ator uma responsabilidade que ele consegue suprir com tranquilidade. Suas principais companheiras de tela, Lupita Nyong’o e Danai Gurira (Michonne de The Walking Dead), também entregam com maestria as personagens femininas fortes, como as mulheres de Wakanda são, com posição de poder e entrega a nação.
O fato do conflito familiar ser foco, tendo nuances shakespearianas, tendo o continente africano como mais do que pano de fundo, quase um personagem, fica difícil não lembrar de “Rei Leão” também da Disney, que tem sua versão live-action em produção, aumentando nossa expectativa para ela. Também fica o destaque para a trilha sonora, comandada por Kendrick Lamar, que já está disponível no Spotify.
“Pantera Negra” tranquilamente já é um marco na história do cinema de quadrinhos, assim como “Mulher-Maravilha”. Esperamos que também possa ser um marco de guinada de uma Hollywood monocromática para uma Hollywood mais igualitária e plural.
Por MAZE