AVISO: esse texto contém spoilers. Só leia depois de assistir ao filme, quando você provavelmente vai estar tão desnorteado que vai precisar mesmo de um guia para entender o caminhão que passou por cima de você.
O filme que está dividindo opiniões nesse segundo semestre – e olha que mal estreou! – é o novo longa do diretor dos novos clássicos “O Lutador” e “Cisne Negro”, Darren Aronofsky. Toda a estrutura de “Mãe!” é calcada em subtextos e metáforas, e como em todo bom filme, cada um pode ter a sua própria interpretação.
Quem conhece as obras antecessoras de Aronofsky sabe que ele tem uma queda por referências bíblicas, e aparentemente é disso que se trata seu novo longa; mais até do que “Nóe”, sua versão para a história do homem que construiu a Arca e salvou os animais do Dilúvio (e ira) de Deus, lançado em 2014. A história de “Mãe!” tem arquétipos vistos tanto no Velho quanto no Novo Testamento, os dois livros que formam a Bíblia como nós a conhecemos hoje. Esse texto tem a intenção de te ajudar a desvendar esse emaranhado de metáforas, para que a experiência depois de visto o filme seja ainda mais recompensadora.
Alerta para os spoilers!
Para começar, fica bastante claro que a Mãe, no filme, é a personagem de Jennifer Lawrence, e essa matriarca na realidade se trata da Mãe Natureza, ao passo em que Ele, a personagem de Javier Bardem, é a representação de Deus. Por fim, a casa onde eles moram é a representação metafórica da Terra como planeta. E como se chega a essa conclusão? Simples: Ele, no longa, é um poeta que escreveu apenas um livro que é cultuado por uma legião de fãs (interprete isso como o Velho Testamento), e que se encontra em crise criativa, sem condições de para saciar o desejo de seus seguidores por material novo. Em determinado momento, a Mãe fica finalmente grávida, e quando isso lhe é revelado, ele tem um surto de criatividade e escreve um novo poema, que é publicado com estardalhaço por sua editora (papel de Kristen Wiig), que aqui encarna o papel do Arauto de Deus – aquele que propaga a palavra divina para os homens. Esse novo livro pode ser interpretado como o Novo Testamento, que dá início aos eventos mais insanos do longa.
Mas antes de passar para essa parte, vamos voltar um pouco. Ainda no primeiro ato, o casal recebe a visita de um homem, interpretado por Ed Harris. Pouco depois, sua esposa também aparece, na pele de Michelle Pfeiffer. Ele, doente; ela, arrogante e egocêntrica. São os primeiros fãs do Poeta, melhor dizendo, os primeiros fiéis de Deus. Portanto, representam Adão e Eva, os primeiros humanos que foram expulsos do Paraíso depois que Eva come do fruto proibido (no filme, essa tendência dela é evidenciada na cena onde ela quebra o cristal no escritório). Essa ligação fica muito mais óbvia com a chegada dos filhos, sendo um deles extremamente ganancioso (no filme, interpretados pelos irmãos na vida real Brian e Domhnall Gleeson) e que encarnam a versão de Caim e Abel, cuja história fala sobre a relação de poder entre os irmãos até que um mata o outro. E ambos são filhos de Adão e Eva.
A Criação, artística e religiosa
Depois de toda a situação familiar envolvendo esses personagens, o filme continua com a relação entre Deus e a Mãe Natureza, que finalmente descamba para o momento em que ela engravida, que graficamente é representada como se fosse quase um estupro, depois de uma discussão do casal.
No dia seguinte, Ela acorda afirmando estar grávida, fato que desperta a criatividade d’Ele. Essa sequência pode ser vista como o momento em que o Novo Testamento é criado – nesse trecho da Bíblia é que se conta a história de Jesus Cristo.
Com Ela grávida, fica fácil matar a charada. A gravidez é a representação do nascimento de Cristo. É interessante notar que a criança dá seu primeiro “chute” na barriga da Mãe no exato momento em que o Poeta considera terminada a sua obra: tanto um quanto o outro foram gerados por inspiração dele.
Com o novo livro publicado por sua editora, que como já dissemos, representa aqui o Arauto de Deus que espalha a palavra Dele, a legião de adoradores da obra do poeta (ou profeta?) passa a admirá-lo a ponto de transformá-lo numa entidade onipotente. E em pouco tempo perdem o controle, passando a agir de forma irracional em nome de Sua palavra. A crítica é poderosa, nada sutil. E nessa irracionalidade, eles invadem a casa da Mãe, e destróem tudo o que encontram pela frente, brigam entre si, e é recorrente a desculpa que usam para isso: o Poeta disse que é preciso compartilhar. Considerando que a casa é a representação do nosso planeta, o que Aronofsky quis dizer aqui é que, em nome de Deus, as pessoas destroem o planeta e a si mesmos.
Há, nessa sequência em que estranhos cada vez em maior quantidade invadem a casa da Mãe, mais uma representação importante: ainda grávida, ela prepara um jantar de comemoração pela nova obra de seu marido, que é consequentemente invadido por desconhecidos, que tomam o lugar na mesa tal qual a representação bíblica da Última Ceia.
Então, temos o nascimento da criança. O parto se dá no meio da confusão em que centenas de pessoas destroem a casa, que é literalmente um organismo vivo com a qual a Mãe tem uma enorme conexão. Ela dá a luz no escritório do Poeta, justamente o lugar que ele usa para criar suas obras – referência explícita a Criação de Deus, já que Jesus é descendente direto dele, portanto, obra sua.
A fúria da Natureza e o recomeço
A partir daí a obra ganha contornos bíblicos mais evidentes.
Como a crucificação de Jesus e sua consequente morte, quando a criança é exposta pelo Poeta para seus seguidores, que acabam o matando, assim como Jesus foi condenado à crucificação pelo povo. A Mãe, em desespero, percebe o que aconteceu e vê, aterrorizada, que os pedaços de seu filho foram comidos entre os seguidores de seu marido, assemelhando-se ao missal cristão que divide o Corpo e o Sangue de Cristo entre os fiéis.
A Mãe, em fúria, mata alguns dos presentes, mas é brutalmente espancada pelo resto, até ser salva pelo Poeta (aqui, a ideia é mostrar o quanto a humanidade machuca e maltrata a Mãe Natureza). Então, quando ela percebe que seu marido não a ama, mas sim ama a atenção que ela lhe dá, ela resolve destruir a casa juntamente com seu marido e seus seguidores. Ao fazer isso, explodindo a residência, a referência é o livro do Apocalipse, capítulo bíblico onde o mundo acaba em fogo. E aí, na sequência final, o Poeta surge, vestido de branco, pedindo a Mãe um último ato: a entrega de seu amor incondicional. Não tendo nada mais para dar a Ele, sobra apenas isso: seu amor, retratado como seu coração. Ao tirá-lo do peito Dela, o coração se transforma no cristal, aquele mesmo que a “Eva” quebrou. Com isso, tudo se renova, a casa se reconstrói e tudo começa outra vez. A mensagem é: por mais que a humanidade destrua o planeta e acabe com a natureza, tudo se renova através do amor.
Quando, depois do incêndio, a Mãe pergunta ao Poeta o que ele é, sua resposta é: “eu sou o que sou”. São as palavras que Deus disse a Moisés no livro do Êxodo. Nada é por acaso.
Ainda há muito o que descobrir
Para encerrar esse guia, é evidente que existem referências mais óbvias que não citamos no decorrer do texto (os presentes que a criança recebe são os presentes dos reis magos no nascimento de cristo, o momento em que o Poeta diz “quero trazer vida para esta casa!” numa referência a criação da Humanidade por Deus), o homem identificado como uma espécie de “sacerdote” tem a voz dublada por Ed Harris (o “Adão”), etc. Assim como numa obra como essa ainda existem muitas perguntas sem resposta: o que é aquele líquido amarelo cintilante que a Mãe bebe quando se sente mal (o que acontece cada vez que um estranho entra em sua casa)? Qual o papel da polícia que invade a casa durante a “festa” de comemoração do novo livro? São questões que fazem que “Mãe!” precise de uma segunda revisão, pois é praticamente impossível assistir uma vez só e captar todas as metáforas adicionadas pelo diretor e roteirista ao longo do trabalho.
Mas fica evidente que o longa é um extenso estudo sobre o processo de criação, não só artística quanto a criação divina. É como se Aronofsky usasse, na superfície, a história de um genial escritor em crise e sua compassiva esposa, mas como pano de fundo para nos dar um belo resumo sobre tudo que há de ruim na Bíblia. A necessidade de atenção que Deus tem de suas criações, a ganância, a luxúria, a violência, as contradições da religião… está tudo bem demonstrado no filme, que já se credencia para ser uma daquelas obras que dividem opiniões na época do lançamento, mas depois adquirem o status de clássico, obra-prima. Ponto para Darren Aronofsky, que provavelmente conseguirá colocar um filme seu no mesmo panteão onde deitam eternamente em berço esplêndido as criações de Kubrick, Scorsese, Tarkovsky, entre outros grandes realizadores.
Com a colaboração de Well Aires e Lucas Rodrigues